quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

"Hotel Chelsea"

Não sou agarrado a conceitos. No entanto, aquilo que leio faz-me reflectir sobre assuntos que para muitos são conceitos transformados em verdades absolutas. Desculpem-me os que são crentes, mas para nós não passam de vocabulário desactualizado.
Refiro-me a conceitos como treino físico, preparação física, pastas de preparação física, entre outros. Não critico quem pensa desta forma. Critico quem compara o nosso processo com outros processos. Os processos de treino e competição são todos diferentes. Para nós é uma questão de concepção, mas mais do que isso é uma questão de “operacionalização”.

Começo por dizer o que tenho dito noutras alturas: não tenho preparador físico, pelo que não posso ter pastas de preparação física, pois como líder responsável pelo processo não teria pasta para lhe dar! Tenho sim colaboradores no processo de treino e jogo, com funções muito específicas, de acordo com as necessidades de gestão de uma época longa. Tudo se relaciona com a forma como treinamos. Não temos espaço para o treino físico, isto é, não temos espaço para os tradicionais treinos de resistência, força ou velocidade. É tudo uma questão de comportamentos! Exercitamos o nosso modelo de jogo, exercitamos os nossos princípios e subprincípios de jogo, adaptamos os jogadores a ideias comuns a todos, de forma a estabelecer a mesma linguagem comportamental. Trabalhamos exclusivamente as situações de jogo que me interessam, fazemos a sua distribuição semanal de acordo com a nossa lógica de recuperação, treino e competição, progressividade e alternância. Criamos hábitos com vista à manutenção da forma desportiva da equipa, que se traduz por um frequente “jogar bem”.

Sei que é uma questão difícil de desmontar sob o ponto de vista cultural. Além do mais existem pessoas, por direito próprio, a pensar de forma radicalmente oposta. Mesmo para os que dizem treinar com situações de jogos reduzidos, porque mesmo esses vivem agarrados e obcecados com tempos de exercitação, de repouso, repetições, etc. Todas estas questões são para nós “acessórias”. O que é crucial é mesmo o conteúdo de princípios de jogo inerentes a cada exercício e a relação interactiva que estabelecemos com o mesmo. O que é mesmo fundamental é entender que aquilo que procuramos é a qualidade de trabalho e não a quantidade, treinar para jogar melhor.

José Mourinho, revista Record DEZ, 15 de Outubro de 2005

O texto acima foi escrito por José Mourinho que, creio eu, dispensa apresentações, e fala, embora que apenas superficialmente, do treino físico. Diz o agora treinador do Inter de Milão que não tem espaço no seu micro-ciclo semanal para o treino físico. Convém lembrar que estamos a falar de equipas profissionais, muitas vezes com treinos bi-diários de duas ou mais horas, que treinam no espaço que bem entenderem, com jogadores que já não têm (ou não deveriam ter) grandes lacunas em termos técnicos e tácticos, ou seja, já passaram há muito a fase de aprendizagem, de iniciação, e até mesmo a fase de especialização. Para além de que estamos a falar de adultos, cuja capacidade de encaixe é muito superior à de uma criança.

Visto isto, é fácil perceber que se os Seniores do Chelsea (nesta altura Mourinho estava nesta equipa inglesa), mesmo com estas facilidades todas, não têm tempo para fazer trabalho físico, as Escolas do SC Coimbrões, que treinam 3 horas por semana a meio-campo, terão muito menos. Ainda para mais quando falamos de crianças entre os 9 e 11 anos, cujos défices técnicos (e também tácticos) são enormes. E, ao contrário do físico, as valias técnicas ou são adquiridas na fase de iniciação ou dificilmente serão adquiridas, já que a abertura ao conhecimento nestas idades é muito maior, já para não falar na questão motora.

E que ilação podemos tirar disto tudo? Que seria pouco inteligente retirar tempo de treino precioso para a aquisição e potencialização de capacidades técnicas para usá-lo com a parte física. Ou, pelo menos, usar esse tempo sem associar o físico ao técnico.

E como fazemos isso? Com exercícios de 1x1, muito exigentes a nível físico, que obrigam o atleta a 30s/1m de grande intensidade, mas que o mantém sempre em contacto com a bola e com o objectivo do golo. Ou com exercícios de 3x3, onde praticamente não há paragens e o contacto com a bola e a necessidade de se movimentar são uma constante. Há um sem número de exercícios que são altamente exigentes a nível físico, dependentes apenas da intensidade que cada atleta decide dar à sua prestação. Se juntarmos a isto o facto de uma criança desta idade raramente estar quieta, sendo capaz de passar todo o dia a realizar um enorme esforço físico sem se ressentir (seja a jogar futebol, às escondidas, caçadinhas, o que for), percebemos que o "treino físico" puro (o correr à volta do campo, os circuitos de velocidade sem bola, etc.) é, de facto, uma perda de tempo. E se 3 horas semanais de treino são pouco (daí a que tanta gente fale com saudade do "Futebol de Rua"), imagine-se o que seria se desperdiçássemos esse já de si reduzido tempo com trabalho desnecessário.

Se queremos atletas que amanhã sejam capazes de saber o que fazer com a bola, capazes de interpretar o jogo e não se limitarem a destruir e a jogar directo, temos que aproveitar agora, a fase de iniciação, para lhes dar os argumentos técnicos necessários e ajudá-los a os potencializar. Até mesmo a parte táctica deve ser, em parte, descurada, porque é também algo demasiado complexo para atletas desta idade.
Respeitando quem pensa o contrário, a metodologia de treino desta equipa técnica, naturalmente, continuará a ser a mesma, ou seja, voltada quase exclusivamente para o técnico, procurando aos poucos introduzir o táctico, mas sempre com muita bola à mistura. E se num futuro tivermos mais "treinos físicos", estes não serão bom sinal, porque apenas os fizemos como "castigo".

P.S.: E não havemos de estar assim tão mal fisicamente... afinal, pelo que ouvi, tivemos vários atletas com excelentes prestações nas provas de corta-mato da escola ou nas provas de resistência de Educação Física.


Cumprimentos,
Mister Guto

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